[Opinião] Autonomia não se Negocia
O Estatuto inviável e o lugar dos quilombos
Na última quarta-feira, dia 9 de setembro, foi aprovado na Câmara o Estatuto da Igualdade Racial, em discussão há mais de dez anos. Parlamentares, organizações da sociedade civil e entidades negras favoráveis à nova versão do texto fizeram o que lhes cabia: celebraram. No entanto, essa vitória tem um gosto amargo, perceptível na comemoração levemente constrangida do senador Paulo Paim, autor do projeto original. É que o que os grandes jornais não noticiaram – com exceção do sítio G1 no domingo passado com o título “Estatuto da Igualdade Racial divide o movimento negro” – foi o forte embate que rondou, desde a realização da II Conapir (Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial) em junho deste ano, o processo que levou à aprovação do documento. Enquanto os resignados se contentavam com o “Estatuto possível”, os que não negociam a legítima autonomia da população negra lutavam pelo “Estatuto necessário”.
Na busca pela aprovação a qualquer custo, o que não foi “possível”, como é de costume, refere-se justamente às resoluções com maior potencial de mudança da realidade social da população negra. Destas, destaca-se o artigo que reconhecia os direitos territoriais das comunidades quilombolas. A resistência aos direitos dessas comunidades não é de hoje, e seria ingenuidade da parte das organizações do movimento negro ter a expectativa de que a bancada ruralista e seus “capitães-do-mato” do DEM não analisariam essa seção do Estatuto nos mínimos detalhes. Sob o pretexto de que o artigo do texto é inconstitucional, pois retira o limite temporal* de ocupação de terras por quilombolas, previsto na Constituição, a tropa de choque ruralista bateu o pé e determinou as regras do jogo. Este passou então a ser o principal ponto de conflito no processo de apreciação do Estatuto. Isso, somado a três outros pontos que ficaram de fora: percentual de cota para negros nas universidades, cotas para negros na televisão e em filmes e a exigência de identificação de pacientes por raça pelo SUS, fez do texto aprovado um estatuto “desidratado”, como colocou o deputado federal Damião Feliciano (PDT-PB). Ele mesmo, que votou pela aprovação, justificou que “é melhor 20% de alguma coisa do que 100% de nada”.
Será mesmo? Qual o custo político de se aprovar um texto que na prática não passa de um conjunto de boas intenções, mas que chega aos olhos da sociedade como um grande avanço? É preciso não perder de vista que o texto tal qual foi aprovado tem caráter autorizativo e não determinativo. Isto significa que fica a critério dos gestores públicos a decisão de cumpri-lo ou não. Além disso, retirou-se a criação do fundo de recursos financeiros que custearia a implementação das políticas públicas decorrentes do Estatuto. Uma proposta que não cria obrigatoriedade de sua aplicação e ainda exclui os meios mínimos para que algo saia efetivamente do papel, já nasce como pior do que nada. Nesse sentido, a exclusão das referidas questões na proposta aprovada poderia até ser posta em perspectiva, uma vez que a própria natureza do texto mostra-se pro-forme.
No entanto, para nós que somos comprometidos com os povos e comunidades tradicionais, é triste comprovar o lugar reservado para os direitos dos grupos étnicos deste país. O lugar é o de um artigo banido e repetitivo (visto que é quase uma cópia do de nº 68 do ADCT da Constituição de 1988) dentro de uma seção de um Estatuto há mais de 10 anos para ser votado, de caráter meramente autorizativo e que trata do direito à igualdade da população negra. Este é o lugar “de direito” das comunidades quilombolas, desconsideradas em seu ethos que não se restringe à identidade de cor, tomadas genericamente e ainda demonizadas como as mais novas ameaças à propriedade privada no país. Um segmento da população que vem sofrendo ataques, dos mais diretos aos mais velados, de todos os lados: governo, ruralistas, acadêmicos, grande mídia e agora, também parte do próprio movimento negro.
É por isso que a Ocareté aderiu ao Manifesto em Defesa dos Direitos e da Autonomia da População Negra, lançado na II Conapir. Ainda acreditamos no Estatuto necessário, o único possível. Não obstante, também estamos convencidos de que o lugar das comunidades quilombolas não se limita a ele e continuamos na busca pela garantia de seus direitos étnicos e territoriais, nos instrumentos legais e para além deles, pois a autonomia dos povos não se negocia.