[Artigo] O Direito à Identidade Étnica

As leis existem para a proteção do ser humano e de sua dignidade. Não é por outro motivo que a dignidade da pessoa humana é tida pela Constituição Federal (a lei mais importante do País) como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art.1º, III), podendo ser considerada princípio, meio e fim do Direito. É tal princípio que deve guiar a criação, interpretação e aplicação das leis e atos normativos.

Para alcançar esses objetivos existe uma categoria especial de direitos: os direitos fundamentais, também conhecidos como direitos humanos.

Os direitos fundamentais não se perdem com o tempo, não podem ser renunciados e nem mesmo as leis podem extingui-los. Não é a toa que é comum dizer que eles são anteriores ao Estado e que existem independentemente de estarem previstos em leis. Tanto é assim que a própria Constituição Federal reconhece direitos que decorrem de princípios por ela adotados, ainda que não estejam escritos em nenhum texto legal (art.5º,§2º). São exemplos de tais direitos a vida, a saúde, a liberdade, o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a identidade étnica.
Mas… o que seria esse Direito à Identidade Étnica?

O Direito à Identidade Étnica é, resumidamente, o direito que uma pessoa tem de preservar, vivenciar e reproduzir sua cultura sem sofrer qualquer represália por isso. Envolve aspectos como idioma, religião, modo de vida e organização social.

Ok… mas para que proteger esse direito? Pra que ele serve? É ele tão importante a ponto de o considerarmos como sendo do mesmo nível do direito à vida e liberdade?

O Direito à Identidade Étnica permite que o indivíduo pertencente a um determinado grupo, geralmente uma minoria, possa se afirmar como tal. Preserva, dessa forma, sua concepção de mundo, sua cultura, permitindo que ele possa construir seus valores, objetivos e forma de se relacionar consigo, com os demais homens e com o universo. Enfim, é com base em sua identidade que o indivíduo constrói sua personalidade, estruturas psíquicas e emocionais. É com base em sua identidade que o indivíduo estabelece seus conceitos de certo e errado, bem e mal, justo e injusto.

Privar um ser humano de sua identidade é assassinar sua alma. Basta ver, por exemplo, a situação dramática dos povos indígenas da América Latina, em que muitas vezes jovens são levados ao suicídio, entre outros motivos, pela negação e destruição de sua identidade.

É evidente que só há sentido em se falar de identidade étnica em situações de contraste, nas quais que há diferentes culturas.

Esse direito fundamental não está previsto de forma expressa na Constituição Federal, embora possa ser extraído da leitura de alguns de seus artigos.

Já em seu preâmbulo a Constituição estabelece como sendo uma das finalidades da República Federativa do Brasil a criação de uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.

O artigo 215, por sua vez, dispõe em seu caput que é dever do Estado brasileiro garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”, bem como apoiar e incentivar a “valorização e a difusão das manifestações culturais”. Em seu parágrafo primeiro o de proteger “as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.

A proteção do direito à identidade étnica também fica clara quando no parágrafo segundo do artigo 215 o Estado Brasileiro se compromete a legislar sobre “a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais” e no parágrafo terceiro coloca como uma das finalidades do Plano Nacional de Cultura a “valorização da diversidade étnica e regional”.

Isso tudo sem contar que no artigo 216 a Constituição dispôs que o patrimônio cultural brasileiro é formado por “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Em seu inciso I, inclui no conceito de patrimônio cultural “os modos de criar, fazer e viver”.

Por fim, o artigo 231 da Constituição Federal assegura aos povos indígenas o reconhecimento de sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” .

Vale lembrar que o parágrafo segundo do artigo 5º da Lei Maior, conforme já mencionado, permite que sejam reconhecidos direitos fundamentais decorrentes dos princípios adotados pela Constituição, ainda que não estejam escritos.

Todas essas disposições são reforçadas por tratados internacionais, que dispõe de forma ainda mais explícita sobre o tema.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) foi o grande pioneiro na sua regulamentação. Seu artigo 27 serviu de base para importantes instrumentos normativos como a Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas e a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho. O referido artigo determina que:

“nos estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”.

Inspirada nesse dispositivo, a Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas estabeleceu como sendo dever do Estado proteger a “existência e identidade nacional ou étnica, cultural,religiosa e linguística das minorias dentro de seus respectivos territórios”, além de fomentar “condições para promoção de identidade”.

O parágrafo primeiro do artigo 2º de tal documento determina que:

“as pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas (doravante denominadas “pessoas pertencentes a minorias”) terão direito a desfrutar de sua própria cultura, a professar e praticar sua própria religião, e a utilizar seu próprio idioma, em privado e em público, sem ingerência de discriminação alguma.”

Também seria possível mencionar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata dos direitos dos povos indígenas.

Dessa forma, não há como negar a existência de um direito fundamental à identidade étnica, essencial para proteção da dignidade humana, nem a sua proteção, seja internacional, seja no Estado brasileiro.