[Nota] Repúdio à Emenda Constitucional nº 215/00 da Câmara dos Deputados
O Projeto de Emenda Constitucional nº 215/00 da Câmara dos Deputados, que atribui ao Congresso Nacional a competência exclusiva para aprovação da demarcação de terras indígenas e ratificação das demarcações já homologadas, parte de premissas equivocadas e inaugura mais um lamentável capítulo na história de afronta aos direitos dos povos originários.
A Constituição Federal de 1988 reconhece em seu artigo 231 o direito dos povos indígenas às terras tradicionalmente por eles ocupadas, sendo estas consideradas imprescindíveis para a reprodução física e cultural desses povos, segundo seus usos, costumes e tradições (art.231,§1º da Constituição Federal).
Esse direito às terras também é previsto em tratados internacionais subscritos pelo Brasil, como é o caso da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (art.14) e pela Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas (Parte III, parágrafos 14 e 15).
A importância desse direito já foi reconhecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em demanda envolvendo a comunidade indígena Mayagna Awas Tingini contra a Nicarágua, na qual foi decidido que a relação dos povos originários com suas terras “não é meramente uma questão de posse e produção, mas um elemento material e espiritual do qual devem gozar plenamente, inclusive para preservarem seu legado cultural e transmiti-lo às gerações futuras”. (1)
Não resta, portanto, qualquer dúvida de que o direito dos povos indígenas às suas terras é elemento imprescindível para garantir sua suas reproduções físicas e culturais.
Para assegurar esse direito, a Constituição Federal determina no artigo 231, caput, que a União promova a demarcação das terras indígenas, o que atualmente é feito mediante estudos técnicos de equipe designada pela FUNAI, nos termos do Decreto Federal nº 1.775/96.
Ocorre que a PEC 215/00, ao condicionar tal medida à aprovação do Congresso Nacional, insere de forma indevida um juízo de conveniência política em um processo que deve ser pautado por critérios técnico-científicos.
Além disso, ao acrescentar nova etapa ao processo demarcatório, torna-o mais lento e burocrático, acentuando o descumprimento da Constituição pelo Poder Público, uma vez que, nos termos do artigo 67 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, a demarcação de terras indígenas deveria ter sido concluída no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Assim, a PEC 215/00 fragiliza não só a proteção dos direitos territoriais dos povos indígenas, como também a sua própria existência enquanto povos, violando tratados internacionais subscritos pelo Brasil, a exemplo da Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas.
E o faz sob premissas totalmente equivocadas e mediante o desvirtuamento de consagrados institutos jurídicos.
Com efeito, em sua exposição de motivos, a PEC 215/00 afirma que durante o processo demarcatório o Poder Executivo da União Federal, “ sem nenhuma consulta ou consideração aos interesses e situações concretas dos estados-membros, tem criado insuperáveis obstáculos aos entes da Federação”, o que consistiria em “verdadeira intervenção em território estadual” sem mecanismos de controle.
Ocorre que, nos termos do artigo 2º,§8º do Decreto Federal nº 1.775/96, os Estados, Municípios e demais interessados podem, desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação do relatório técnico da FUNAI no Diário Oficial, apresentar documentos e manifestações que demonstrem a existência de vícios e demais falhas no aludido relatório, bem como eventual direito à indenização.
Ou seja, não há que se falar em qualquer ausência de consulta ou consideração dos interesses e situações concretas dos estados-membros.
Tampouco se sustenta a alegação de que a demarcação de terras indígenas seria uma modalidade de intervenção da União nos estados-membros.
A intervenção é a “cessação excepcional da autonomia política dos Estados, Distrito Fedeal ou Municípios, com vistas ao restabelecimento do equilíbrio federativo” (2), sendo medida excepcional, admitida tão somente nas hipóteses previstas no artigo 34 da Constituição Federal que, por sua vez, não contempla o processo demarcatório.
Importante esclarecer que, nos termos do artigo 231, caput da Constituição Federal, os povos indígenas possuem direitos originários, anteriores à própria formação do Estado, aos seus territórios, razão pela qual essas terras jamais foram pertencentes ao ente federado em que se situam.
Assim, ao promover o processo demarcatório, a União não priva o estado-membro ou o particular de qualquer parcela de propriedade, o que torna descabida a alegação de intervenção no ente federado.
Melhor sorte não é reservada ao argumento de inexistência de controle do ato da União Federal, uma vez que os atos praticados durante o processo demarcatório, assim como qualquer ato administrativo, pode ter sua legalidade questionada junto ao Poder Judiciário.
Consistiria sim afronta ao princípio da separação dos poderes a permissão de que o Poder Legislativo pudesse substituir-se à vontade do Administrador e adentrar em sua discricionariedade técnica, substituindo-a por critérios de conveniência política.
Por fim, a ratificação das terras já demarcadas não traz qualquer segurança jurídica. Ao contrário, torna instáveis relações já consolidadas, afrontando as garantias do ato jurídico perfeito e do direito adquirido (art.5º, XXXVI da Constituição Federal).
Diante do exposto, a Ocareté vem manifestar seu total repúdio ao Projeto de Emenda Constitucional nº 215 da Câmara dos Deputados, na medida em que tal projeto parte de premissas falsas e representa inegável e injustificável retrocesso na proteção dos direitos dos povos indígenas.
Referências:
(1) CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de la Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm> Acesso em: 02.ago.2010
(2) BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 5ª Ed. Rev e atual . São Paulo: Saraiva, 2010 p.967