[Artigo] “Mito” e “Mitologia”: Usos, costumes e ideologias

Lendo as notícias, como rotineiramente, deparei-me com algumas matérias que abordavam a criação de jogos de videogame baseados no panteão Iorubá e na cultura dos Iñupiat, do Alasca. A iniciativa de se criar jogos com tais temáticas é ótima, e deve ser exaltada e disseminada. O que me chamou a atenção, entretanto, foi o uso do conceito “mitologia” nas matérias. Como entusiasta da História das Religiões, atentei-me para o discurso do texto. Em nenhum momento as matérias davam a entender que estavam inferiorizando ou desqualificando tais tradições. Isso me fez refletir sobre os usos desse conceito.

Num segundo momento, perguntei a conhecidos e amigos religiosos o que eles achariam se chamassem suas respectivas religiões de “mitologia”. Não foi surpresa ao constatar que, entre indiferenças e desgostos, as respostas permeavam a seguinte ideia: minha religião é real, é verdade! “Mito é a Medusa”. Novamente, refleti sobre o uso desse conceito.

Qual a questão acerca do mito, da mitologia? Conceitos carregam consigo uma carga de sentidos, significados e ideologias. Aos utilizá-los não estamos apenas nos referindo a um sentido literário, mas estamos invocando toda essa carga construída historicamente. Assim, por mais que haja boa vontade de quem o usa, ao relacioná-lo com uma religião africana ou qualquer tradição fora da chamada “civilização ocidental”, inevitavelmente, incorre-se ao perigo de subjetivamente reproduzir um discurso de dominação, de etnocentrismo. Meus amigos estão aí para ilustrar. Mas vamos ao conceito.

É comum se referir a Mito como uma narrativa heroica que remete à antiguidade, geralmente grega ou romana. Mas, mais do que isso, “O sentido original do termo mito é o de “discurso”; a mudança de significado, em virtude da qual mito tornou-se sinônimo de discurso falso ou fantástico, é fruto da polêmica que opôs mythos a logos: polêmica que se desenvolveu no seio da cultura grega – investindo depois a cultura ocidental – em concomitância com o advento e a afirmação da filosofia, que reservou apenas para si a prerrogativa de formular discursos verdadeiros, e isso colocou em crise o plano mítico.”(1)

Não obstante, o papel do mito, ainda na Grécia Antiga, manteve grande importância, não apenas no campo da religião, mas também nas artes. Para superar essa contradição e, no intento de dar nova legitimidade ao termo, surgiram diversos pensamentos, dentre os quais, o alegorismo, que “enfatizava a capacidade do mito de aludir, de maneira indireta, as verdades da ordem moral”,(2) e o evemerismo, que sustentava ”a existência de um núcleo de verdade nos mitos: verdade de ordem histórica neste caso, em que a fantasia posterior, pouco inclinada à verdade, dilatou desmedidamente”.(3)

Na modernidade, com o desenvolvimento das pesquisas etnológicas, o mito voltou a ganhar destaque diante de sua importância para as culturas estudadas. No final do século XIX, o mito foi visto como uma tentativa racional de atribuir explicações à natureza, tentativa essa fadada ao fracasso, de acordo com a ideia vigente, o evolucionismo cultural. Como se pode ver, no decorrer da história, o mito (4) ganhou uma série de interpretações. Destaco a de Angelo Brelich, a qual afirma que “o mito não explica a realidade, mas a funda, ou seja, fá-la existir sob a base de sistemas de valores precisos, conferindo-lhe um sentido cultural”.(5) Em suma, longe de ser uma “mentira”, o mito estrutura as religiões.

Religião é outro conceito que deve ser abordado. Após o imperador Constantino (séc. IV d.C.) ter abraçado a fé cristã e tê-la adotado como oficial de todo Império Romano, o cristianismo se espalhou por toda Europa – onde prevalece até os dias atuais -, e permaneceu ligado historicamente ao conceito “religião”, a despeito de o usarmos para toda e qualquer manifestação religiosa. Esse processo de disseminação e, por que não dizer, controle social exercido pela Igreja Católica acabou relegando todas as outras religiões ao posto de “falsas religiões” ou mitologias.

No Brasil,(6) essa força permaneceu durante muito tempo de modo que a Igreja Católica foi a única permitida durante séculos. Ela apareceu na primeira Constituição, de 1822, como sendo a única religião permitida, a oficial, posto que era a praticada pela Coroa portuguesa; a Constituição de 1824 trouxe a novidade de liberdade religiosa, mas com restrições: outras manifestações religiosas só poderiam ser praticadas domesticamente e nenhum templo poderia ser construído com arquitetura diferenciada. Na Constituição de 1891 a religião católica foi desmembrada do Estado, deixando de ser oficial; na de 1946 foi estabelecida a liberdade de consciência, crença e exercícios de cultos religiosos.(7) Mas não se pode ignorar, no entanto, que, para além das leis, há o modus operandi da sociedade. Durante a maior parte desse período histórico, o Brasil se utilizou de mão-de-obra escravizada.

Quando os portugueses trouxeram milhões do continente africano para trabalhar na terra do pau-brasil, não chegaram apenas pessoas para alimentar a economia brasileira, chegou uma grande gama cultural, incluindo costumes, alimentação e, certamente, religiões. Não percamos de vista que o processo de escravidão, em sua raiz, parte do princípio de desumanizar e inferiorizar o outro. A eugenia, a frenologia e o evolucionismo social são apenas algumas das paraciências da época para justificar e legitimar tal finalidade. Não é de se estranhar, portanto, que cultos aos orixás, por exemplo, estejam associados à maldade. Se historicamente o termo “religião” está associado à Igreja Católica, no Brasil, também historicamente, os cultos africanos e indígenas estão relacionados ao demônio. Ainda que o romantismo do século XIX tenha unificado as chamadas três matrizes (portuguesa, africana e indígena), o que permaneceu foi a discriminação que, às duras penas, vem sendo combatida.

Deparamo-nos, portanto, com dois momentos de desqualificação e inferiorização: o primeiro com o domínio político e territorial da Igreja Católica, o segundo, com a escravidão. Toda essa conjuntura histórica mantém viva nos dias atuais o uso de conceitos que, à revelia das pessoas, mantém vivas fortes cargas ideológicas. A população utiliza os conceitos “mito” e “mitologia” para se referir a uma religião em desuso ou a uma crença fantasiosa, como “mitologia indígena” ou “mitologia iorubá”; e também para se referir a uma mentira, sem se dar conta de que muitas dessas “mitologias” são práticas vivas e presentes.

Em princípio, não haveria maiores problemas, já que, academicamente, são conceitos utilizados frequentemente. O problema real está em quando veículos midiáticos se referem a religiões como “mitologias” e a sociedade, sem se dar conta, aceita as subjetividades históricas do conceito. Depois, perguntamos a essa mesma sociedade como ela se sentiria se alguém chamasse sua religião de mitologia, e sua reação é a de negar, pois “mitologia” está associada a uma mentira ou fantasia. A mitologia é sempre a religião do outro.

Há, portanto, um risco muito grande em se utilizar tais conceitos para se referir a qualquer religião, especialmente as africanas e indígenas, historicamente suprimidas. Por fim, se você é religioso, deixo a pergunta: como você se sentiria se chamassem sua religião de mitologia?

1 – MASSENZIO, Marcello. A história das religiões na cultura moderna. São Paulo: Hedra, 2005, p.139.

2 – BRELICH apud MASSENZIO, op. Cit., 2005, p. 140.

3 – Idem.

4 – Além do sentido religioso, é corriqueiro o uso de mito no sentido heroico, grandioso, como o “título” atribuído ao ex-goleiro Rogério Ceni ou a qualquer um que se destaque ou realize feitos considerados grandiosos. Da mesma forma, vê-se em programas de TV quando apontam “mitos de celebridades”, “mitos da natureza”, etc.

5 – MASSENZIO, op. Cit., 2005, p. 141.

6 – A América como um todo vivenciou esse processo, mas com suas características e especificidades.

7 – Na Constituição de 1988, foi reafirmada laicidade do Estado e a liberdade de consciência que, chega, inclusive, a proteger os locais de cultos e liturgias, como diz o Art. 5. VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

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